Fonte: www.tdvadilho.com |
---|
![]() Era tarde da madrugada quando o corvo passou sobrevoando a colina. Das suas narinas saia uma névoa espessa e, no bater cansado e desajeitado de suas asas, penas se soltavam ao ar. O corvo havia vindo de longe, de muito longe… provavelmente ainda mais longe do que você acabara de imaginar. Ele começou a descer assim que avistou o riacho, e se atirou na terra úmida assim que seus pés sentiram o corpo de água passar. Esgotado, o pássaro fechou os olhos ali mesmo, ao relento, permitindo ao sono, enfim, lhe domar. ![]() ![]() —Sua asa está machucada — comentou um filhote de cervo, levando o pássaro a despertar. —Não é nada — respondeu o corvo cordialmente, embora ser acordado fosse a última coisa pela qual gostaria de passar. — Vai melhorar. Sua voz era rouca e potente, como se carregasse um peso do qual jamais poderia se livrar. —Tem certeza? — insistiu o filhote. — Meus pais podem ajudar. —É muita bondade sua, criança, mas não creio que eles iriam querer me amparar. —Ué, e por que não? Tá vendo essa marquinha aqui? — mostrou o joelho. — Meus pais ficaram lambendo até sarar. Eles sempre ajudam os outros. —Oh sim, tenho certeza de que ajudam — disse o corvo com um sorriso sincero. — Mas também tenho certeza de que comigo seria diferente. De qualquer maneira, muito obrigado — reverenciou. — Agora, com a sua licença, tenho algo com o qual me ocupar. Com um bom esforço o corvo se levantou e caminhou até o riacho. Depois de tomar alguns goles, e grasnar, a ave mergulhou a cabeça na água gelada, apanhou uma pedra rugosa do fundo, e a equilibrou com cuidado sobre a ponta da única pedra pontiaguda que vencia a profundidade do corpo de água que passava por lá. —Uau! — exclamou o filhote de cervo boquiaberto. O pássaro acanhou-se por um breve instante. —E agora? — continuou a criança. — O que vai fazer? —Empilhar mais — respondeu o corvo depois de se convencer de que a pedra rugosa não iria cair. —Hmm… — murmurou o filhote. — Por quê? —Porque empilhar pedras é o que eu faço — explicou o pássaro. —Por quê? —Porque empilhar pedras faz parte de quem eu sou. —Por quê? O pássaro deixou um leve sorriso aparecer e uma rápida lufada de ar escapar pelas narinas. —Isso, criança, eu realmente não sei — respondeu. — Eu nasci com a necessidade de empilhar pedras, assim como você nasceu com a necessidade de saltitar. Eu não entendo porque você saltita, mas se isso te faz bem, acho mais é que deveria saltitar; afinal, você não está causando mal a ninguém, não é mesmo? O quadrúpede avaliou as suas memórias e afirmou: —É. —Seguindo a mesma lógica, não acha que eu deveria empilhar? —Hmm… acho! O corvo grasnou carinhosamente e sorriu; depois pulou sobre uma pedra um pouco mais próxima da margem e passou a procurar por mais uma pedra para empilhar. —Sabe… — murmurou o filhote algum tempo depois — E-eu queria ser um cervo que empilha pedras — comentou, fazendo uma pausa para fingir empilhar pedras no ar. — Você pode me ensinar? Por um breve momento as pernas do corvo bambearam. Escutar aquele pedido, e assistir ao teatrinho, era o último rumo para o qual ele pensava que aquela conversa iria caminhar. Parecia, na verdade, até ser algo inventado pela sua imaginação; e, de fato, ela já entrava em ação, trazendo à tona memórias de um passado recorrente, de um passado totalmente contraditório ao presente daquela situação. No entanto, de esguelha, o pássaro viu algo que o puxou de volta à realidade e mudou completamente a sua feição. —Um dia — respondeu o corvo. — Quem sabe… —Ahh… — suspirou o filhote. — Por que não agora? —Porque agora é melhor você ir — aconselhou, indicando o topo de uma colina próxima. — Seus pais o querem lá. No ponto mais alto da região, em meio a dois pinheiros gigantescos, dois cervos adultos, um macho e uma fêmea, encaravam com desprezo o pássaro e a pedra que ele acabara de empilhar. O filhote concordou e, prometendo voltar na manhã do dia seguinte, foi fazer coisas cervídeas como todo cervo faz; enquanto o corvo ficou lá, procurando por pedras como todo corvo empilhador de pedras faz. ![]() —Puxa! — exclamou o cervo, chegando ainda mais cedo do que no dia anterior. — Quantas pedras empilhadas! Em cima das pedras que ficavam acima do leito do riacho havia agora três pilhas de pedras empilhadas. Uma pilha com sete pedras, uma com nove e outra só com pedras azuladas, na qual o pássaro, incessante, ainda trabalhava para equilibrar. —Bom dia, criança — saudou o corvo. — Como passou o resto do dia de ontem? O cervo pareceu deixar a felicidade se dissipar. —Triste — confessou ele. — Meus pais falaram pra ficar longe de você. —E, pelo que eu vejo, você os ignorou… —É — murmurou. — Mas não tem problema. Eles ainda não acordaram porque ficaram conversando até tarde, falando que você é o próprio si… sinistro? Alguma coisa assim. —Hmm… — pensou o corvo, tomando um tempo para levantar o pé e coçar o rígido pescoço. — Bom, não foi a pior palavra usada para me descrever — concluiu ele sem se abalar. —Não? — perguntou o filhote. —Oh não, de forma alguma. —Então qual foi? —Sádico — respondeu o corvo sem grasnar. —E sádico é pior do que sinistro? —Ah sim — afirmou o corvo, balançando a cabeça repetidas vezes. — Com certeza, é sim. O cervo pôs-se então a repetir as palavras ‘sádico’ e ‘sinistro’ algumas vezes em voz alta, dando ênfases diferentes só para testar. —Não parece — comentou o filhote por fim. — Sinistro parece mais… uuuuh… sabe? O corvo gargalhou baixo. —Sei. Parece mesmo. Mas, nesse caso, o significado importa mais do que o som. —Ahhh — soltou o filhote, melhor compreendendo a situação. —Sinistro é algo intrínseco — continuou o corvo —; algo que, querendo ou não, faz parte do que alguém é. —Igual você ser empilhador de pedras e eu precisar saltitar? —Exato — respondeu o pássaro. — Agora, ser sádico já é diferente. Ser sádico é uma escolha que eu teria de fazer pelo simples prazer em causar desprazer. O filhote acenou, e depois perguntou: —E você é? —E eu sou?… —Você sabe, alguma dessas coisas aí. —Isso — respondeu o corvo com um tom amistosamente sério —, somente cabe a você opinar. —Eu? Por que eu?! —Porque, para qualquer outro além de mim, não importa quem ou o que eu realmente sou; apenas importa aquilo que eles optaram por enxergar. —Mas eu não quero te enxergar como nenhuma dessas coisas! — protestou a criança. —Ora, então já temos a resposta: para você, eu não sou sádico e nem mesmo sou o próprio sinistro. O cervo sorriu aliviado. Naquele instante, do alto da colina, sons de galopes pesados começaram a se propagar. —É melhor você ir — apressou o corvo. —Amanhã eu volto, tá? Você ainda vai tá aqui, não é? —Vou, criança. Ainda que eu quisesse partir, minhas asas não me permitiriam voar; elas precisam de mais um ou dois dias de folga para descansar. —Promete? —Prometo — respondeu. — Não partirei sem me despedir. Agora vá, não quero ser a causa dos seus problemas. Compreendendo, o cervo se foi; tomando um caminho diferente para ninguém o encontrar. Pouco depois seus pais apareceram por entre as mesmas árvores do topo da colina e, ao notarem a presença solitária do corvo, estufaram os peitos, deram meia-volta e saíram de lá. Na noite daquele mesmo dia, no entanto, algo estava marcado para se desenrolar. O som de cascos afobados se chocando contra o chão da colina foi ouvido pelo corvo que, ciente do que aconteceria, procurou uma alta árvore para se abrigar. Os cervos chegaram em bando no riacho, com olhos ardentes e proferindo palavras que prefiro não reiterar; e, sem qualquer receio ou misericórdia, os quadrúpedes se puseram a devastar. Ao todo, nove esculturas de pedras empilhadas foram ao chão; assim como um pequeno abrigo que o corvo construíra lá. O ultimato havia sido dado então: o corvo deveria sair imediatamente pois, aquele lugar jamais iria aceitar a sua existência excêntrica; aquele lugar jamais iria permitir ao sinistro se instaurar. ![]() O filhote surgiu no alto da colina logo pela manhã do dia seguinte, e ao perceber que não havia mais pedras empilhadas no riacho saiu em disparada, aborrecido com a possibilidade da partida do pássaro. —Corvo, corvo! — gritou ele ao chegar. — Corvo, onde você está?! —Estou aqui em cima, criança — respondeu o pássaro. — Olhe para cá. Um suspiro de alívio foi dado. —Achei que você tinha ido embora. —Eu prometi que não partiria sem me despedir, não foi? —É… — envergonhou-se o cervo. — Mas então o que aconteceu? Por que você subiu aí? E cadê as pilhas de pedras? —Algumas criaturas vieram durante a noite e destruíram tudo. —Ah não! Quem foi? Por que fizeram isso? Deliberadamente, o pássaro respondeu apenas a última pergunta: —Fizeram isso porque eu empilho pedras. —Mas isso não parece um bom motivo! — protestou o filhote. —E não é. —Então vem, vamos chamar meus pais e encontrar esses animais! —Não. —Não? —Não — repetiu o corvo. — Não precisa se preocupar. Deixe que seus pais descansem sossegados; tenho certeza de que estão cansados demais para querer ajudar. —Mas e as pedras?! —Está tudo bem — disse o corvo pousando no chão. — Essa não é a primeira vez que isso me acontece, e, infelizmente, nada me leva a crer que será a última. —Então por que você continua empilhando? O corvo abriu as asas e grasnou: —Não dá para fugir daquilo que somos, criança. Pelo menos, não para sempre. O cervo concordou, internalizou e se calou. Pareceu-lhe o melhor a ser feito diante de algo que, por algum motivo inexplicável, lhe soava incontestável. —Agora, com sua licença, minha criança; o tempo está ótimo e eu tenho coisas a fazer — disse o corvo espreguiçando as asas. —Pode me contar pra onde você vai? —Poderia… — disse o corvo — Se eu soubesse. A verdade é que eu nunca sei para onde vou, criança. Tudo o que faço é bater as asas e deixar o vento me levar. —E até quando você vai fazer isso? —Até encontrar o meu lar. —Aqui não pode ser seu lar? —Receio que não. Meu lar jamais poderia ser um lugar tão propenso a me engaiolar. As palavras pesaram no estômago do cervo. Não porque ele compreendia todo o significado por trás delas, mas sim porque entendera que, para o corvo, aquele não era o seu lugar. O filhote então correu para o meio do riacho, pedindo para o pássaro o esperar; depois, fez como imaginara que deveria: abaixou a cabeça, apertou os olhos, deixou seus sentimentos falarem, encontrou o ponto e mergulhou para alcançar. ![]() Primeira ilustração feita para o conto. Materiais utilizados —Aqui — disse ele, colocando uma pedra verde e lisa, chamada de amazonita, na frente do corvo. — Pra te ajudar a começar a empilhar no seu lar. Emocionado, o corvo fez uma longa reverência que levou o seu bico a encostar no chão. —Estamos devidamente despedidos então? — perguntou o pássaro ao reerguer. —Aham. —Então adeus, meu bom amigo! Espero que encontre mais de você no próximo lugar. —Adeus! — disse o filhote, carregando a certeza de que mais dia, menos dia, o corvo empilhador de pedras iria encontrar um lugar para chamar de lar. ![]() Pedras empilhadas, estão por todos os lugares… ![]() Apoie as HistorietasO compartilhamento dessa história foi possível graças ao apoio dos leitores. Como forma de os homenagear e agradecer, deixo aqui alguns de seus nomes imortalizados nas páginas dessa historieta ❤️ ![]() DiretamenteApoie por PIX ou com a compra dos meus livros e ilustrações. Todas as contribuições e compras fazem uma enorme diferença! IndiretamenteCompras afiliadas geram comissões que me permitem continuar criando. Clique no botão e compre normalmente; o preço não muda :) Sem custoSe inscreva na newsletter Cartas em Busca de um Lar e receba um ![]() Os imortalizados da vez são escolhidos sem qualquer comparação. TODO apoio faz uma enorme diferença, e escrever o nome de alguns apoiadores foi a forma que encontrei para tornar mais palpável o meu sentimento de gratidão. Esse sentimento, no entanto, é para com todos vocês que apoiam as histórias. Ainda que seu nome possa não tenha aparecido nessa edição,
saiba que os imortalizados da vez estão te representando, e o ato de Sendo assim, muito obrigado por fazer parte das Historietas ❤️ Mais historietascomo essa, aqui...   
Qual a relação entre corvos e pedras? Hein? Qual a relação entre corvos e pedras? Caw-caw!
![]() Sapos que Fingem Perfeição
Rafaela fechou o livro e o largou no chão. Estava decidida a não ler a última página de uma história fantasiosa que acabara apenas lhe deixando com um gosto desgostoso na boca e uma certa inquietação no coração... ![]()
Comentários• Clique em entrar e escolha entre comentar como anônimo ou com um usuário • Para receber notificação de respostas, clique em "Inscrever-se por E-mail" depois de entrar :) |
Materiais Utilizados


