Fonte: www.tdvadilho.com
Lettering É Noite de Filme de Terror. Letras mais quadradas, brancas com borda roxa, dispostas de forma brincalhona, torta

Contos ( Al )

  |   Fantasia

 |  8 minutos

Parte I

Era tarde da madrugada quando o corvo passou sobrevoando a colina. Das suas narinas saia uma névoa espessa e, no bater cansado e desajeitado de suas asas, penas se soltavam ao ar. O corvo havia vindo de longe, de muito longe… provavelmente ainda mais longe do que você acabara de imaginar.

Ele começou a descer assim que avistou o riacho, e se atirou na terra úmida assim que seus pés sentiram o corpo de água passar. Esgotado, o pássaro fechou os olhos ali mesmo, ao relento, permitindo ao sono, enfim, lhe domar.

Ilustração da capa da Historieta #4, O corvo que empilhava pedras © 2023 TD VADILHO (www.tdvadilho.com) -noai-noimageai
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Parte II

Sua asa está machucada — comentou um filhote de cervo, levando o pássaro a despertar.

Não é nada — respondeu o corvo cordialmente, embora ser acordado fosse a última coisa pela qual gostaria de passar. — Vai melhorar.

Sua voz era rouca e potente, como se carregasse um peso do qual jamais poderia se livrar.

Tem certeza? — insistiu o filhote. — Meus pais podem ajudar.

É muita bondade sua, criança, mas não creio que eles iriam querer me amparar.

Ué, e por que não? Tá vendo essa marquinha aqui? — mostrou o joelho. — Meus pais ficaram lambendo até sarar. Eles sempre ajudam os outros.

Oh sim, tenho certeza de que ajudam — disse o corvo com um sorriso sincero. — Mas também tenho certeza de que comigo seria diferente. De qualquer maneira, muito obrigado — reverenciou. — Agora, com a sua licença, tenho algo com o qual me ocupar.

Com um bom esforço o corvo se levantou e caminhou até o riacho. Depois de tomar alguns goles, e grasnar, a ave mergulhou a cabeça na água gelada, apanhou uma pedra rugosa do fundo, e a equilibrou com cuidado sobre a ponta da única pedra pontiaguda que vencia a profundidade do corpo de água que passava por lá.

Uau! — exclamou o filhote de cervo boquiaberto.

O pássaro acanhou-se por um breve instante.

E agora? — continuou a criança. — O que vai fazer?

Empilhar mais — respondeu o corvo depois de se convencer de que a pedra rugosa não iria cair.

Hmm… — murmurou o filhote. — Por quê?

Porque empilhar pedras é o que eu faço — explicou o pássaro.

Por quê?

Porque empilhar pedras faz parte de quem eu sou.

Por quê?

O pássaro deixou um leve sorriso aparecer e uma rápida lufada de ar escapar pelas narinas.

Isso, criança, eu realmente não sei — respondeu. — Eu nasci com a necessidade de empilhar pedras, assim como você nasceu com a necessidade de saltitar. Eu não entendo porque você saltita, mas se isso te faz bem, acho mais é que deveria saltitar; afinal, você não está causando mal a ninguém, não é mesmo?

O quadrúpede avaliou as suas memórias e afirmou:

É.

Seguindo a mesma lógica, não acha que eu deveria empilhar?

Hmm… acho!

O corvo grasnou carinhosamente e sorriu; depois pulou sobre uma pedra um pouco mais próxima da margem e passou a procurar por mais uma pedra para empilhar.

Sabe… — murmurou o filhote algum tempo depois — E-eu queria ser um cervo que empilha pedras — comentou, fazendo uma pausa para fingir empilhar pedras no ar. — Você pode me ensinar?

Por um breve momento as pernas do corvo bambearam. Escutar aquele pedido, e assistir ao teatrinho, era o último rumo para o qual ele pensava que aquela conversa iria caminhar. Parecia, na verdade, até ser algo inventado pela sua imaginação; e, de fato, ela já entrava em ação, trazendo à tona memórias de um passado recorrente, de um passado totalmente contraditório ao presente daquela situação. No entanto, de esguelha, o pássaro viu algo que o puxou de volta à realidade e mudou completamente a sua feição.

Um dia — respondeu o corvo. — Quem sabe…

Ahh… — suspirou o filhote. — Por que não agora?

Porque agora é melhor você ir — aconselhou, indicando o topo de uma colina próxima. — Seus pais o querem lá.

No ponto mais alto da região, em meio a dois pinheiros gigantescos, dois cervos adultos, um macho e uma fêmea, encaravam com desprezo o pássaro e a pedra que ele acabara de empilhar.

O filhote concordou e, prometendo voltar na manhã do dia seguinte, foi fazer coisas cervídeas como todo cervo faz; enquanto o corvo ficou lá, procurando por pedras como todo corvo empilhador de pedras faz.

Parte III

Puxa! — exclamou o cervo, chegando ainda mais cedo do que no dia anterior. — Quantas pedras empilhadas!

Em cima das pedras que ficavam acima do leito do riacho havia agora três pilhas de pedras empilhadas. Uma pilha com sete pedras, uma com nove e outra só com pedras azuladas, na qual o pássaro, incessante, ainda trabalhava para equilibrar.

Bom dia, criança — saudou o corvo. — Como passou o resto do dia de ontem?

O cervo pareceu deixar a felicidade se dissipar.

Triste — confessou ele. — Meus pais falaram pra ficar longe de você.

E, pelo que eu vejo, você os ignorou…

É — murmurou. — Mas não tem problema. Eles ainda não acordaram porque ficaram conversando até tarde, falando que você é o próprio si… sinistro? Alguma coisa assim.

Hmm… — pensou o corvo, tomando um tempo para levantar o pé e coçar o rígido pescoço. — Bom, não foi a pior palavra usada para me descrever — concluiu ele sem se abalar.

Não? — perguntou o filhote.

Oh não, de forma alguma.

Então qual foi?

Sádico — respondeu o corvo sem grasnar.

E sádico é pior do que sinistro?

Ah sim — afirmou o corvo, balançando a cabeça repetidas vezes. — Com certeza, é sim.

O cervo pôs-se então a repetir as palavras ‘sádico’ e ‘sinistro’ algumas vezes em voz alta, dando ênfases diferentes só para testar.

Não parece — comentou o filhote por fim. — Sinistro parece mais… uuuuh… sabe?

O corvo gargalhou baixo.

Sei. Parece mesmo. Mas, nesse caso, o significado importa mais do que o som.

Ahhh — soltou o filhote, melhor compreendendo a situação.

Sinistro é algo intrínseco — continuou o corvo —; algo que, querendo ou não, faz parte do que alguém é.

Igual você ser empilhador de pedras e eu precisar saltitar?

Exato — respondeu o pássaro. — Agora, ser sádico já é diferente. Ser sádico é uma escolha que eu teria de fazer pelo simples prazer em causar desprazer.

O filhote acenou, e depois perguntou:

E você é?

E eu sou?…

Você sabe, alguma dessas coisas aí.

Isso — respondeu o corvo com um tom amistosamente sério —, somente cabe a você opinar.

Eu? Por que eu?!

Porque, para qualquer outro além de mim, não importa quem ou o que eu realmente sou; apenas importa aquilo que eles optaram por enxergar.

Mas eu não quero te enxergar como nenhuma dessas coisas! — protestou a criança.

Ora, então já temos a resposta: para você, eu não sou sádico e nem mesmo sou o próprio sinistro.

O cervo sorriu aliviado.

Naquele instante, do alto da colina, sons de galopes pesados começaram a se propagar.

É melhor você ir — apressou o corvo.

Amanhã eu volto, tá? Você ainda vai tá aqui, não é?

Vou, criança. Ainda que eu quisesse partir, minhas asas não me permitiriam voar; elas precisam de mais um ou dois dias de folga para descansar.

Promete?

Prometo — respondeu. — Não partirei sem me despedir. Agora vá, não quero ser a causa dos seus problemas. Compreendendo, o cervo se foi; tomando um caminho diferente para ninguém o encontrar. Pouco depois seus pais apareceram por entre as mesmas árvores do topo da colina e, ao notarem a presença solitária do corvo, estufaram os peitos, deram meia-volta e saíram de lá.

Na noite daquele mesmo dia, no entanto, algo estava marcado para se desenrolar.

O som de cascos afobados se chocando contra o chão da colina foi ouvido pelo corvo que, ciente do que aconteceria, procurou uma alta árvore para se abrigar. Os cervos chegaram em bando no riacho, com olhos ardentes e proferindo palavras que prefiro não reiterar; e, sem qualquer receio ou misericórdia, os quadrúpedes se puseram a devastar. Ao todo, nove esculturas de pedras empilhadas foram ao chão; assim como um pequeno abrigo que o corvo construíra lá. O ultimato havia sido dado então: o corvo deveria sair imediatamente pois, aquele lugar jamais iria aceitar a sua existência excêntrica; aquele lugar jamais iria permitir ao sinistro se instaurar.

Epílogo

O filhote surgiu no alto da colina logo pela manhã do dia seguinte, e ao perceber que não havia mais pedras empilhadas no riacho saiu em disparada, aborrecido com a possibilidade da partida do pássaro.

Corvo, corvo! — gritou ele ao chegar. — Corvo, onde você está?!

Estou aqui em cima, criança — respondeu o pássaro. — Olhe para cá.

Um suspiro de alívio foi dado.

Achei que você tinha ido embora.

Eu prometi que não partiria sem me despedir, não foi?

É… — envergonhou-se o cervo. — Mas então o que aconteceu? Por que você subiu aí? E cadê as pilhas de pedras?

Algumas criaturas vieram durante a noite e destruíram tudo.

Ah não! Quem foi? Por que fizeram isso?

Deliberadamente, o pássaro respondeu apenas a última pergunta:

Fizeram isso porque eu empilho pedras.

Mas isso não parece um bom motivo! — protestou o filhote.

E não é.

Então vem, vamos chamar meus pais e encontrar esses animais!

Não.

Não?

Não — repetiu o corvo. — Não precisa se preocupar. Deixe que seus pais descansem sossegados; tenho certeza de que estão cansados demais para querer ajudar.

Mas e as pedras?!

Está tudo bem — disse o corvo pousando no chão. — Essa não é a primeira vez que isso me acontece, e, infelizmente, nada me leva a crer que será a última.

Então por que você continua empilhando?

O corvo abriu as asas e grasnou:

Não dá para fugir daquilo que somos, criança. Pelo menos, não para sempre.

O cervo concordou, internalizou e se calou. Pareceu-lhe o melhor a ser feito diante de algo que, por algum motivo inexplicável, lhe soava incontestável.

Agora, com sua licença, minha criança; o tempo está ótimo e eu tenho coisas a fazer — disse o corvo espreguiçando as asas.

Pode me contar pra onde você vai?

Poderia… — disse o corvo — Se eu soubesse. A verdade é que eu nunca sei para onde vou, criança. Tudo o que faço é bater as asas e deixar o vento me levar.

E até quando você vai fazer isso?

Até encontrar o meu lar.

Aqui não pode ser seu lar?

Receio que não. Meu lar jamais poderia ser um lugar tão propenso a me engaiolar.

As palavras pesaram no estômago do cervo. Não porque ele compreendia todo o significado por trás delas, mas sim porque entendera que, para o corvo, aquele não era o seu lugar.

O filhote então correu para o meio do riacho, pedindo para o pássaro o esperar; depois, fez como imaginara que deveria: abaixou a cabeça, apertou os olhos, deixou seus sentimentos falarem, encontrou o ponto e mergulhou para alcançar.

Ilustração da Historieta #4, O corvo que empilhava pedras. Conto disponível no site www.tdvadilho.com. A ilustração, feita tradicionalmente com nanquim, bic preta e lápis colorido aquarelável, ilustra o momento em que o cervo entrega uma pedra verde para o corvo como um sinal de boa sorte. © 2023 TD VADILHO (www.tdvadilho.com) -noai-noimageai

Primeira ilustração feita para o conto. Materiais utilizados

Aqui — disse ele, colocando uma pedra verde e lisa, chamada de amazonita, na frente do corvo. — Pra te ajudar a começar a empilhar no seu lar.

Emocionado, o corvo fez uma longa reverência que levou o seu bico a encostar no chão.

Estamos devidamente despedidos então? — perguntou o pássaro ao reerguer.

Aham.

Então adeus, meu bom amigo! Espero que encontre mais de você no próximo lugar.

Adeus! — disse o filhote, carregando a certeza de que mais dia, menos dia, o corvo empilhador de pedras iria encontrar um lugar para chamar de lar.

Pedras empilhadas, estão por todos os lugares

Pedras empilhadas, estão por todos os lugares…

asssinatura TD Vadilho

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