Fonte: www.tdvadilho.com |
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![]() Ainda me lembro de quando decidimos acampar no gramado do quintal de casa; eu, meu primo e meu irmão. Meu pai chegou do trabalho depois de ter passado horas em cima do telhado, trabalhando como calheiro, na área de construção. É um trabalho duro, pesado, e muitas vezes o Sol é desgraçado, mas, ainda assim, ele improvisou uma barraca com as barras e a lona de uma piscina desmontável, e, para completar, puxou um ponto de luz do porão. Eu tinha medo do escuro, toda noite via vultos; ainda me recordo de cada forma com exatidão. Então, a verdade é que, para mim, aquele ponto de luz significou muito mais do que uma simples prevenção. Meu pai abriu uma cerveja, e esticou os pés num dos banquinhos da churrasqueira, enquanto nós três fomos buscar os colchões. Ele faz isso até hoje, meu pai, estica os pés cansados e simplesmente olha o quintal… e nesses momentos é como se o mundo desacelerasse para uma velocidade suportável; nesses momentos é como se a tranquilidade preenchesse todo o meu ser, até transbordar, algo que soa um tanto quanto surreal… Pouco depois minha mãe nos chamou para a janta; subimos a escada correndo, devoramos a lasanha correndo, e descemos de volta para o quintal com os cobertores e travesseiros já em mãos — correndo também, é claro —, só para descobrir que a barraca havia sido invadida e o Tico tinha se apossado de parte do meu colchão! Ele estava um pouco fedido, perfume de cachorro molhado, resultado dos seus passeios em meio às chuvas de verão. Nós conversamos com ele, cutucamos, forçamos a voz, mostramos a saída e até ensaiamos um transporte estratégico, mas foi tudo em vão… Tico sempre fora o tipo de cachorro decidido, daqueles vira-latas que tomam conta de si, e que enfatizam quando tomam uma decisão; e, naquela hora, Tico rosnou, ele havia decidido ficar na barraca, não tinha jeito, acampamos nós quatro então. Um pouco mais tarde, meu irmão inventou uma brincadeira, cada um precisava pensar em um personagem para brincar e, como não poderia ser diferente, pensei em um tigre, porque eu sempre tive algo com tigres, como uma estranha atração — no fundo, acho que todos temos uma ligação insensata com algum animal; a minha é com tigres, meu pai costumava me chamar de Tigrão —. A questão, é que as pessoas, uma hora, dormem; e quando isso aconteceu, com meu primo e meu irmão, me vi sozinho, e acabei me pegando pensando naqueles vultos que me visitavam todas as noites, e na probabilidade iminente de que me procurariam desamparado na barraca, principalmente aquele que tinha forma de bruxa, ou aquele desgramado que parava à porta do meu quarto e sorria com a maior ironia; aquele desgramado vulto de um anão. Eu sei que ali havia o ponto de luz, e sei que a luz era a minha barreira de proteção… mas você sabe o que acontece durante a noite, quando se é criança, e os roncos tomam conta da situação? Exato: um adulto imperceptível se materializa na surdina para apagar a luz e poupar na conta de energia, e nisso, é óbvio, os vultos ficam livres, porque todo mundo sabe que vultos se movem pela escuridão… Ugh. Clique. Interruptor acionado. Luz apagada. Economia na conta. Olá, escuridão… Começo a sentir a presença dos vultos rondando. É esmagadora. Pesada. Pesa tanto quanto as batidas descompassadas do meu coração… Nunca senti tanta cobiça reunida, nunca senti tanta maldade se movendo em minha direção. E ela não se move como se chegar logo fosse preciso; não… Ela se move pouco a pouco, passo a passo, como predadora que preza pelo prazer pavoroso que prepara a presa e a põe na mesa, e eu? Travo. Sinto o suor gelado. Estou apavorado. Seguro meu corpo com tanta força que ele revida, se contorcendo num espasmo. Meus pés acabam roçando nos pelos do Tico. Sinto o áspero. Vivo. Sinto o áspero vivo à qual me agarrar! Afundo meu pé em seu corpo quente, sinto o seu sangue pulsar. E enquanto isso os vultos se aproximam. Erguem os braços. Tocam na lona. Estão tão, mas tão prestes a entrar! E então… o rosnado. Volumoso. Retumbante. Amedrontador. Os vultos se dobram sob o fervor do rosnado protetor! Tico rosnou como rosna um tigre. Olho para ele e vejo um tigre. Tico é pai, Tico é Tico, Tico é luz, Tico é tigre. Não tenha medo, ele me diz. Essa noite, vulto nenhum vai te tocar. E, assim, a escuridão perde o seu peso, me aconchego à multitude no tigre, e permito o sono me levar… Aquela foi a melhor noite de descanso que tive na infância. Aquela foi a noite em que descobri que cachorros que dormem em barracas improvisadas viram tigres na calada da noite, para todo e qualquer vulto afastar.
Ao meu pai, ao Tico e ao tigre Do eterno Tigrão.
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